Histórias que trazem histórias

“Sempre que podia eu passava em frente da livraria e como nem sempre podia comprar, parava e lia pela vitrine um livro que estava aberto. Nem sabia do que se tratava, pois não tinha o discernimento que tenho hoje. E parece até que sabiam que eu lia pois a cada dia o livro estava aberto na página seguinte. Sabendo disso eu ‘me obrigava’ a ir para o centro apenas para ler aquele livro misterioso. Tímido, nunca me atrevi a entrar e perguntar que livro era aquele. Mas até hoje, quando passo em frente, me detenho a olhar para aquele lugar como se ela ainda estivesse lá.”


As histórias têm o poder mágico de nos remeter a um outro tempo, um outro lugar, uma outra dimensão. Seja ficção, relatos reais ou um misto de ambos, elas desencadeiam um dispositivo interno capaz de reativar memórias que dormiam tranquilas em algum lugar da mente, nos levar ao passado, despertar sentimentos e emoções. Elas podem aquecer o coração, fazer o corpo estremecer, nos tirar por alguns momentos da realidade. Ou ainda nos projetar para o futuro, nos fazer sonhar, nos dar coragem e motivação para ir além.
A história da Livraria 15, publicada originalmente no jornal Notícias do Dia há muitos anos e postada recentemente no site da Academia Joinvilense de Letras, mostrou isso de forma clara. Ela trouxe lembranças de pessoas de diferentes idades, profissões, convicções – muitas sequer se conheciam, outras reencontraram colegas de infância. Todos, de alguma forma, ligados por um espaço quase mítico, uma livraria do passado.


O menino que lia através da vitrine emergiu de dentro do homem que se tornou (hoje já sexagenário e provavelmente avô) e revelou a sua secreta atividade de décadas passadas. Mesmo abrigando outro estabelecimento comercial, menos poético, o local ainda traz memórias, referências. Ao passar em frente à antiga loja, o menino se encontra com o homem e um conta ao outro as vivências de todos esses anos e, juntos, se escondem nas reminiscências.
Da história da Livraria 15 também emergiu o relato da moça que trabalhava na livraria vizinha. Sem poder estudar devido ao zelo paterno, mas absolutamente fascinada pela perspectiva do conhecimento contido em tantas e tantas páginas, ela arrumava os livros com cuidado – e quando podia, lia furtivamente uma contracapa aqui, outra ali. Em seu imaginário, lidava com preciosidades que continham tudo que já havia sido escrito no mundo. Um mundo amplo, sem limites. Tão perto e tão longe de seus desejos, invejava os estudantes, intelectuais e leitores que circulavam por ali e levavam os títulos para casa.


Como outro menino que um dia, por acaso, se deparou por acaso com o livro de onde o professor de matemática retirava os problemas que aplicava em sala de aula. Estavam todos ali, um por um, para ajudar nos estudos em casa. E lá se vão décadas e décadas de novas histórias.  Muitos levavam revistas para casa, emprestadas, lembra uma jovem às vésperas de completar 80 anos. Ao folhear uma e outra, ela aprendeu a ler em alemão, um hábito que levou por toda a vida, que faz parte de sua cultura, que impactou em sua visão de mundo. Há quem recorde dos enfeites de Natal, dos presentes importados, dos marzipãs decorados, do cheiro de livro novo, do manusear das revistas usadas… cada um, em sua singularidade, trazendo de volta o que os marcou.
Longe de ser um fim em si mesmo, histórias são pontos de partida para outras histórias. Ou para ajudar a entender as nossas próprias andanças, os caminhos que nos levaram a ser o que somos – ou que não somos. Elas nos traduzem de uma forma que não seria possível de outra maneira, que nos dá sentido sem que sequer percebamos. Que nos fazem ter a percepção do que realmente é importante para nós. Como bem traduziu o menino do nariz grudado na vitrine, que tentava ler o livro através do vidro: “Mas até hoje, quando passo em frente, me detenho a olhar para aquele lugar como se ela ainda estivesse lá.”

 

Este texto foi publicado originalmente no Portal Fazer Aqui ,
www.fazeraqui.com.br/historias-que-trazem-historias/ , em 04 de junho de 2020

Comente logado pelo Facebook (Ou se preferir, use a Caixa de Comentários do final da página)

4 comentários em “Histórias que trazem histórias”

  1. Ah, como é bom recordar! Lembranças são milagres da vida que o pai coloca dentro da gente, a exemplo dos resumos dos livros que a gente lê. Aquele que abre um livro abre muitas janelas, enxerga além, vai ao encontro das oportunidades dispostas ao longo do caminho.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *