Feminista, revolucionária, avançada, Julie Engell passou pela Colônia antes mesmo da sua fundação oficial, causou polêmica e deixou sua presença marcada no imaginário de uma cidade
Observação: se copiar o texto ou parte dele, lembre-se de dar crédito ao autor: Maria Cristina Dias
Ela se definia como livre-pensadora e vivia de uma forma bem diferente das mulheres de sua época. No século 19, a berlinense Julie Engell era dona do próprio nariz. Revolucionária, defendia ideias feministas, escrevia artigos de opinião nos jornais e ousou seguir com um homem que na época ainda não era seu marido para as distantes terras da Colônia Dona Francisca. A ela são atribuídas as primeiras imagens feitas no núcleo colonial e também relatos sobre o local que foram considerados propaganda enganosa nos livros que fazem a crônica dos primeiros tempos de colonização. Uma imagem hoje questionada pelos pesquisadores, que destacam seu atuante papel na luta pelos direitos das mulheres.
Julie Engel chegou à Colônia Dona Francisca em 1850. Acompanhava o engenheiro Hermann Günther, encarregado pela Companhia Colonizadora de Hamburgo de preparar o local para a chegada das primeiras levas de imigrantes. Nomeado ainda em Hamburgo, Günther chegou ao Rio de Janeiro no final de 1849, mas só em maio de 1850 rumou para o Sul do Brasil, segundo consta no livro “A Colônia Dona Francisca no Sul do Bradil”, de Theodor Rodowicz-Oswiecimsky, publicado originalmente em 1853, na Alemanha. Tudo ainda estava por ser construído – e esta era a missão do grupo que contava com o representante dos príncipes e vice-cônsul da França, Léonce Aubé; seu funcionário, o cozinheiro Louis Duvoisin e duas famílias contratadas por Günther para fazer o serviço pesado – ou seja, desbravar a mata, construir os primeiros abrigos, iniciar plantações de alimentos.
A presença de Julie Engel foi inesperada e os relatos sobre sua chegada são contraditórios. Enquanto no livro “História de Joinville – Crônicas da Colônia dona Francisca, Carlos Ficker informa que ela fazia parte desse primeiro grupo, no livro de Theodor Rodowicz-Oswiecimsky, consta que ela teria chegado apenas em setembro daquele ano, depois que Günther esteve no Rio de Janeiro. “Ocasião em que solicitou da agência da casa Schröder & Cia roupas para um pobre homem que deveria funcionar como seu criado e acompanhá-lo. Mais tarde descobriu-se que esse criado era (…) do sexo feminino e era uma berlinense, de nome Julie Engell”, escreveu, criticando a administração do engenheiro (demitido antes mesmo da chegada dos primeiros imigrantes) e a convivência do casal, que fugia aos padrões da época. “O senhor Günther foi, afinal, um grande fracasso (…) Além desses males que causou, ainda prejudicou o bom nome da Colonização pela imoralidade de sua conduta particular, de sua união toda angelical com Julie Engell”. “ O fato de morar com Günther sem se casar, provavelmente por questões ideológicas – porque era livre pensadora –, colocava Julie no rol das amásias, uma posição social desvalorizada naquela época”, explica a jornalista e pesquisadora Izabela Liz Schlindwein, que enfocou a trajetória da feminista em sua dissertação de mestrado e agora aprofunda os estudos no doutorado.
No livro de Rodowicz a ela é atribuída “relatórios róseos” e as “excelentes gravuras publicadas no 'Leipziger Illustrierte Zeitung'”, que teriam iludido centenas de imigrantes, estimulando-os a tentar a vida no distante Sul do Brasil sem levar em conta as inúmeras dificuldades desta iniciativa. Ele refere-se a duas imagens das primeiras casas da Colônia, que foram usadas como instrumento de propaganda pela Sociedade Colonizadora de Hamburgo e divulgadas na Europa.
O mito da propaganda enganosa
A chamada “literatura de viagem”, onde os viajantes descreviam os lugares por onde passavam era uma tendência na época. Os artigos e livros se multiplicavam – a própria publicação de Theodor Rodowicz-Oswiecimsky, um militar prussiano que esteve na colônia de setembro de 1851 a 7 de junho de 1852, era um exemplo disso. Esses escritores, porém, eram homens. “Ainda não encontrei grifado na historiografia brasileira o nome de mulheres que teriam escrito sobre o tema imigração. A partir desta primeira informação, é possível imaginar a repercussão na Alemanha dos textos de Julie Engell-Günther, rompendo com a tradição masculina”, destaca Izabela Liz.
A pesquisadora Elke Dislich, que traduziu para o português livros da jornalista, desmistifica a abordagem de Rodowicz e explica que em seus textos ela apresenta a colonização por imigrantes como uma solução, sim, mas que não tinha nada de fácil. “Quando se lê o artigo atribuído a Julie Engell e se olham as ilustrações, que foram publicadas no 'Leipziger Illustrierte Zeitung' de 3 de maio de 1851, e que hoje se encontram na Landesbibliothek de Wiesbaden, não é possível perceber nada que justificasse a crítica do ilustre ex-militar. O artigo é absolutamente realista e não deixa de mostrar também as dificuldades que serão enfrentadas pelos colonizadores. O mesmo acontece em todos os outros escritos de Julie Engell-Günther sobre o Brasil”, destaca. E continua: “Mão de obra é o que faltava na região da Colônia Dona Francisca. Tudo era muito caro. Não havia ferramentas adequadas, nem trabalhadores especializados para derrubar as enormes árvores, cuja madeira a companhia colonizadora pretendia enviar para a Alemanha. Hermann Günther havia sido demitido pelo filho do Senador Schröder, presidente da Companhia Colonizadora Hamburguesa, que assumiu seu lugar, fazendo os investimentos necessários. Em dez anos a colônia já havia evoluído para um logradouro bastante próspero, como mostram fotografias da época. Qual seria, então, a propaganda enganosa contra a colônia?”, questiona.
Izabela, em sua dissertação, ratifica o argumento de Elke. “Julie pode ter sido a primeira pessoa a ter consciência das dificuldades que os imigrantes teriam para transformar a mata fechada em uma paisagem habitável, deixando clara sua preocupação com a divisão de classes que existia na época (…). O tom dos escritos dela nada tem a ver com o paraíso relatado por outros viajantes de épocas anteriores, que mostravam o Brasil como um lugar de seres fantásticos”, afirma.
Embora as pesquisas não explicitem isso, a origem da crítica, poderia estar ligada ao perfil do jornal onde Julie Engel publicou o primeiro artigo sobre a Colônia. “O 'Leipziger Illustrierte Zeitung' (“Jornal Ilustrado de Leipzig”) (…) era um semanário refinado, com papel brilhante e imagens coloridas com reproduções de pinturas, aquarelas e ilustrações. No período da guerra, dava espaço para aspectos das batalhas. (…) Era conhecido por mostrar cenas da vida atrás das linhas de frente, soldados contentes, como se fossem para um acampamento de férias e não para a guerra.”, escreveu Izabela Liz em sua dissertação de mestrado.
Ilustração ou fotografia?
A autoria das imagens e se eram mesmo gravuras também são questionamentos hoje. O próprio Ficker, em seu livro de 1965, já aventava a possibilidade das imagens serem fotografias – e não desenhos. Ele ainda lançava a dúvida se elas seriam da própria Julie, ou não. “Não é hipótese quando afirmamos: 'Existe muita possibilidade de que os originais não eram desenhos e sim fotografias daguerreótipos, invenção recente do francês Daguerre'”, afirma, lembrando que em carta ao imperador dom Pedro 2º, Leónce Aubé comentava que havia trazido da França um daguerreótipo e prometia enviar “vistas da colônia nova”.
Por outro lado, a feminista já poderia ter tido contato com a nova invenção, pois a usou profissionalmente anos mais tarde, quando retornou à Europa com Günther. “O casal, agora com uma união formal, decidiu voltar em 1859 para a Europa. Por dez anos, eles mantiveram um estúdio de fotografia”, revela Izabela que em seus estudos não encontrou evidências de que Julie fosse uma artista, como muitas vezes foi dito.
Leia nos próximos dias:
• A trajetória de Julie Engell e suas impressões sobre a Colônia Dona Francisca e o Brasil
Foto: Julie Engell - 1870 - Acervo Particular Daniel-Henri Guenther
Texto publicado originalmente no jornal Notícias do Dia/Joinville . Gostou do texto? Caso queira compartilhá-lo, lembre-se sempre de citar a fonte e dar o crédito ao autor: Maria Cristina Dias.
Interessante e esclarecedor este texto, que lança mais um pouco de luz sobre os primórdios da Colônia Dona Francisca. Parabéns. HK.
Ilustra bem o significado e a relevância desta memória, que é e sempre será necessária, para desconstruir arquétipos culturais, de resistência a participação da mulher em seu papel natural, na elaboração da sociedade, que buscamos, juntos. Sempre melhor. Parabéns as duas mulheres protagonistas da vida e da história, uma que escreveu outra que deixou escrito!
Muito obrigada, padre Dejacir. Grande abraço!
Bela pesquisa. Obrigada por nos presentear com as tuas descobertas e estudo. Na semana do aniversário de Joinville e do dia da mulher é um prazer conhecer essa personalidade.