Jornalista berlinense passou 10 anos no Brasil do século 19 e deixou suas impressões preservadas em artigos e em pelo menos um livro
Observação: se copiar o texto ou parte dele, lembre-se de dar crédito ao autor: Maria Cristina Dias
A jornalista berlinense Julie Engell, autora do primeiro artigo publicado sobre a Colônia Dona Francisca, não foi turista no Brasil. Longe disto. Com atitudes independentes, culta e decidida, ela chegou ao País em 1849, conheceu o engenheiro Hermann Günther e em 1850 rumou com ele para o Sul, onde acompanharia de perto os primeiros trabalhos e as dificuldades para a instalação do novo empreendimento colonial. A passagem por estas terras foi curta e durou menos de um ano. Depois disto, entretanto, ela permaneceu por quase uma década no Brasil com Günther, com quem se casou oficialmente. Neste tempo aprendeu português, esteve à frente de uma escola no interior de São Paulo e questionou a realidade local, sobretudo a participação feminina e a escravidão. Ao voltar para a Europa, deixou suas impressões em inúmeros artigos publicados nos periódicos locais e em pelo menos um livro: “Noites de Natal no Brasil”, onde conversa com o leitor e descreve um pouco do que viu e viveu por aqui.
O livro foi publicado em 1862 e hoje é raro. Mas uma cópia em microfilme consta no acervo do Arquivo Histórico de Joinville. “Deixemo-nos guiar pelo Sul do Brasil”, escreve Julie Engell, segundo tradução livre do microfilme feita pelo historiador Dilney Cunha. Ela usa uma linguagem romanceada, mas descreve minuciosamente caminhos e paisagens e até critica a infraestrutura encontrada, revelando situações de certa forma ainda atuais. Como a passagem em que fala da infraestrutura precária encontrada na província de Santa Catarina, onde faltam pontes e estradas apropriadas até para cavalos e outros animais – quanto mais para o trânsito de pessoas. “As pontes ficam a cargo de empreendedores, enquanto as ruas ficam a cargo do governo provincial, que parece não dar muita importância para isso” - escreve de forma crítica.
A narrativa deste trecho começa em Desterro, atual Florianópolis, mas a autora já adianta para onde está rumando: “Iremos visitar o início de uma colônia alemã em uma região de mata virgem, fechada, na qual nenhum homem branco pisou”. Na realidade, a região já contava com inúmeras famílias brasileiras, de origem lusa, que não são mencionadas. Sobre Desterro, refere-se como uma “pequena cidade, na bela ilha de Santa Catarina”. Demonstra o encantamento por uma natureza exuberante e não economiza adjetivos para tentar traduzi-la. “Repousa formosamente no verde e azul profundo espelho d'água”, fala, referindo-se à ilha”. “Ela escreve de forma poética, literária e o tempo todo 'fala' com o leitor”, explica Dilney Cunha.
No caminho para a colônia, prossegue enfatizando a diversidade da flora que cobre as cadeias de montanhas e já antecipa o temor de que essa natureza não se conserve. “Aqui e acolá habitadas por alemães que talvez ainda cultuem a natureza como em sua antiga pátria. Ou talvez não. O que infelizmente é certo é que esses bons costumes costumam desaparecer logo em terras estranhas”.
“Às vezes tivemos que ir até a margem e puxar a canoa para levá-la até onde era navegável”
Mais adiante relata a sua chegada a uma lagoa, onde há a foz de um rio mais estreito, repleto de obstáculos, que irá conduzir ao local de destino – uma referência à Lagoa do Saguaçu e ao rio Cachoeira, deduz o tradutor pela descrição do local. “Com muito trabalho conseguimos seguir adiante. Às vezes tivemos que ir até a margem e puxar a canoa para levá-la até onde era navegável e seguir viagem pelo coração da floresta”. E mais adiante, novamente, se encanta com a mata. “Estas são as árvores que nenhum homem plantou e cuja idade dificilmente pode ser identificada”. Ao longo do trecho, Julie fala das comidas que encontrou na viagem, como feijão preto e farinha de mandioca, “praticamente o único alimento disponível”. E comenta sobre as palmeiras e o palmito, “uma iguaria”. Segundo seu relato, o palmito era cozido e ingerido como salada, com vinagre e óleo.
Também escreve uma outra palavra em português, informando entre parênteses como seria a pronúncia em alemão. “Roça” é uma delas. “Esta é a roça, um espaço livre, uma clareira, ainda com tocos, em parte ocupada com alguma construção, mas ainda cercada por uma densa e alta floresta virgem”, informa, já referindo-se ao espaço onde está sendo erguido o núcleo colonial. É importante lembrar que o livro foi publicado mais de 10 anos depois da fundação oficial da Colônia Dona Francisca e que não segue uma narrativa objetiva. Assim não fica claro se ela já encontrou a roça quando chegou por estas paragens ou se está referindo-se a um período posterior, durante a sua estadia.
No seu texto, comenta sobre “uma pequena e primitiva cabana às margens de um riacho ao qual crocodilos, aqui chamados de 'kaimans', aparecem para roubar os patos do desprevenido morador”. Quanto às moradias, descreve cabanas similares às que já haviam aparecido nas gravuras atribuídas a ela, 10 anos antes. “Feitas com bambu e madeira, preenchidas com barro e cobertas com folhas de palmeira” e relata uma ocasião em que as fortes chuvas provocaram uma inundação que derrubou uma destas construções. “As paredes dissolverem”, escreve no texto traduzido por Dilney Cunha.
Sobre o rancho erguido para acomodar o grupo que chegou inicialmente na Colônia, ela é irônica, referindo-se a ele como “palácio do príncipe”. E o descreve como uma construção de três portas na frente e três janelas na parede dos fundos. “As janelas são bastante simples, sem caixilhos e vidraças. Apenas compostas por ripas de madeira para se proteger da noite”.
Dilney prossegue a tradução lembrando que Julie cita o comércio de alimento dos tropeiros, que levavam charque vindo do Rio Grande e do Paraguai para a região de Curitiba. Enfatiza também a presença dos índios nas encostas da Serra do Mar. “Nas encostas destas montanhas existem muitos vales desconhecidos que devem servir para acampamentos de botocudos”. E mais adiante, escreve em português como eles eram conhecidos na região: “índios do mato”. Ao contrário dos guaranis, que já se encontravam em número reduzido no litoral e eram chamados de “índios mansos”.
Muito comentada, pouco conhecida
Em sua dissertação de mestrado, “Julie Engell-Günther: um novo olhar sobre a Colônia Dona Francisca”, a jornalista e pesquisadora Izabela Liz Schlindwein revela um pouco de quem foi Julie Engell e de sua vida antes e depois da passagem pelas terras de Joinville.
Nascida em 1819, no Norte da Alemanha, ela foi batizada como Juliane, mas no decorrer da vida adotou o diminutivo “Julie” para assinar seus textos. “Assinava Julie ou Julia, diminutivos de Juliane. Ou também J.Engell-Günther”, conta Izabela.
Era educadora, escritora e jornalista, e se definia como livre-pensadora. A pesquisadora informa que com 26 anos Julie uniu-se ao grupo de intelectuais politicamente frustrados que partiu na primavera de 1849 no caminho para o Sul da Austrália. Neste mesmo ano, fez escala no Rio de Janeiro, onde o grupo trabalhou dando aulas e conheceu o engenheiro Hermann Günther, da Sociedade Colonizadora de Hamburgo. Nos livros que narram a história local, é descrita como “amásia”, um termo pejorativo. “A sociedade patriarcal escolheu falar sobre Julie Engell-Günther assim, como “amásia” ou um “pobre criado”. Identificada pelo estado civil e não pela função. A historiografia encontrou uma culpada para o fracasso do engenheiro. Tanto no livro de Rodowicz (escrito em alemão em 1853) quanto nos textos do século seguinte, o relacionamento de Julie Engell-Günther aparece como o motivo da derrota de Günther no empreendimento da Colonizadora”, analisa a pesquisadora.
Após a saída da colônia, Julie e Hermann Günther oficializaram a união e permaneceram no Brasil até 1849 – primeiramente em São Paulo e depois em Limeira, onde a jornalista fundou uma escola. O casal teve dois filhos. Depois que voltaram para a Europa, um dos filhos morreu precocemente e o casal se separou. Com mais de 60 anos ela ainda escrevia artigos para os jornais e lecionava em um colégio na Suíça, onde faleceu em 1910. “Em sua passagem pelo Brasil, viveu em uma época em que a educação das mulheres se restringia a atividades que fossem úteis no ambiente doméstico, desprovidas de valor no mercado de trabalho. Elas aprendiam a costurar e desenvolver habilidades artísticas, por exemplo. Diferentemente de tudo isso, temos relatos de uma das alunas de Julie, no interior de SP, em Limeira, em que coloca Frau Gê como educadora preocupada com a formação intelectual de suas alunas, falando muito sobre diferentes culturas no mundo, sociedade e línguas ou literatura francesa”, afirma.
A imagem que abre este post mostra uma obra do pintor Eugênio Colin que é uma releitura de desenho atribuído a Julie, que está no Arquivo Histórico de Joinville - Reprodução Izabela Liz
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Bela história.
Texto com ótima pesquisa, com leveza, transporta a (o) leitora(o) a uma época remota, início da existência de nossa cidade, com descrições de costumes, relações de gênero e fatos bastante interessantes para quem busca na memória do passado, relaçõescom hábitos e costumes presentes, inclusive no campo da feminilidade e questões masculinas… Parabéns