Inventor, ele está na origem da primeira geladeira brasileira, que deu origem à Consul, e de projetos visionários
O que a geladeira doméstica que conhecemos hoje, documentários da inauguração de Brasília, excursões turísticas pelo País, e um show com chafarizes e luzes que encantavam o público têm em comum? Para quem viveu na Joinville dos anos 50, 60 e 70, a resposta é rápida e se resume a um nome: Rudolf Stutzer, uma personalidade inquieta e criativa, que tinha muitos sonhos e uma grande capacidade inventiva. De sua pequena fábrica de anzóis em Brusque saiu a primeira geladeira brasileira, que está na origem da Consul – tradicional marca de eletrodomésticos da linha branca. Mais tarde, rumou para o Planalto Central para registrar em fotos e filmes a inauguração de Brasília, e durante anos organizou excursões e passeios turísticos de kombi e ônibus por esse Brasil afora – e também o espetáculo Águas Dançantes, um “balé” de luzes e águas que era um sucesso nas décadas de 60 e até 70.
Stutzer nasceu na localidade de Subida, que na época pertencia a Blumenau, em 1912. O lugar era pequeno, mas desde menino ele cultivava um olhar curioso sobre o mundo. Aos 80 anos, sua filha Dolores Heinzelmann conta que no lugarejo não havia calçamento e os carros que começavam a passar pelo local deixavam as marcas dos pneus impressas nas ruas de barro. O que devia causar transtornos para os adultos, alimentava a imaginação de Stutzer, que pegava uma pá, tirava o molde que ficava no barro e o secava no forno que a mãe usava para fazer pão. “Tinha uma coleção de moldes de pneus”, revela.
Único filho homem em uma família de sete irmãs, ele foi morar na casa de parentes em Rio do Sul para estudar. Ficou na escola por apenas dois anos, o que não o impediu de buscar conhecimento por onde passava. Era autodidata e tinha uma grande capacidade inventiva.
Com cerca de 20 anos, já morava em Brusque e era motorista particular (chofer, com se falava na época) do cônsul Carlos Renaux – uma amizade e parceria decisiva em sua vida. Jovem, descobrindo o mundo, de vez em quando era repreendido pelo patrão: “Inclusive levava algumas bengaladas. 'Stutzer, olhe para a frente', ele dizia”, conta Dolores. Em uma dessas vezes em que o olhar vagou pelo caminho, o jovem se deparou com Olga Berta Bachmann. E encontrou uma companheira. Quando casaram, Stutzer tinha 21 anos e Berta, 20.
Estes primeiros anos foram bem difíceis. O casal morou em várias cidades e Stutzer trabalhava com mecânica e no que encontrava pela frente. Morou em Taió e Florianópolis e, durante a campanha de nacionalização de Getúlio Vargas, no final dos anos de 1930, foi perseguido devido à sua origem germânica e rumou para Blumenau. “Em 24 horas colocaram o que podiam no caminhão e foram para o interior de Blumenau, onde ele trabalhou em uma fábrica de pregos para poltronas”, lembra a filha que, nascida em 1934, acompanhou os pais nesse retorno.
No início dos anos 40, uma parceria com o cônsul Carlos Renaux proporcionaria um pouco mais de estabilidade à família. Renaux foi o investidor que proporcionou recursos financeiros para a instalação de uma fábrica de anzóis, em Brusque. Stutzer administrava o empreendimento e se encarregava da área operacional. Era a Fábrica de Anzóis Consul. Apesar do nome, o local tinha uma produção variada: garfos e facas com cabos de madeira e até “biqueiras”, pequenas pontas de metal que se colocava na ponta das botas e na sola para evitar o excesso de gasto. Também fazia serviços para terceiros. Como para uma fábrica de grampos para cabelo, que contratava a empresa para finalizar o produto.
Nesse período, montou também uma fábrica de gelo. Fazia gelo e picolés para festas. Geladeira naquela época era algo bem diferente do que é hoje. Eram caixas de madeira com serragem, onde se colocava a barra de gelo para manter os alimentos resfriados. Então, era preciso produzir o gelo para colocar nelas, o que era feito com água salgada, em barras grandes. “A mãe fazia muitos doces. Uma vez, borbulhou demais e misturou água salgada dentro do picolé. O pai ofereceu o picolé, e era salgado... disso eu me lembro”, conta, rindo Dolores, que tinha oito ou nove anos na época.
A primeira geladeira
Um dia, Stutzer foi a Porto Alegre para dar assistência a algum cliente. Lá viu uma geladeira americana, a querosene. “Se encantou. Embaixo tinha fogo e em cima, gelo. Ele tinha fábrica de gelo e era um método diferente. Ficou com aquilo na cabeça, torturando, até que conseguiu fazer”, revela Dolores.
Para fazer os cálculos necessários, pediu ajuda ao cunhado, Oscar Bachmann. “O tio Oscar era ótimo nisso. A parte mecânica foi meu pai que fez”. A estrutura foi feita na própria fábrica, com chapas de metal que Stutzer dobrou e dobrou manualmente. “A primeira geladeira levou mais de um mês para ser feita. Mas a notícia de que o Stutzer tinha feito uma geladeira logo se espalhou. Brusque era uma cidade pequena e se conversava muito”, recorda Dolores, que era menina: “A primeira, acho que ficou um tempo com ele. Em seguida fez outra. Foi mais rápido porque quando fez a primeira já fez com peças em dobro”.
A partir daí entrou em cena uma outra personalidade fundamental na história da geladeira. O empresário Wittich Freitag, que nessa época já tinha a Loja Freitag, em Joinville. Stutzer e Freitag não se conheciam, mas quando soube da geladeira o empreendedor foi conhecer o produto de perto. “Não sei como foram as coisas. Só sei dizer que meu pai e o senhor Wittich entraram em um acordo, mas ele queria trazer a fábrica de geladeiras para Joinville. E meu pai era simpatizante de Joinville”. Os dois e o empresário Guilherme Holderegger se associaram e montaram a fábrica em Joinville.
No início, fabricava-se duas unidades por semana e os amigos acharam que aquilo era uma loucura. Afinal, quem iria comprar tanta geladeira? Mas Stutzer acreditava. “Eu sei que no final de 1950 nós viemos para Joinville – a minha mãe ainda ficou por lá. Eu tinha dois irmãos pequenos que ficaram estudando. E eu fiquei morando na casa do senhor Freitag”, recorda Dolores.
A fábrica em Brusque foi vendida e uma nova empresa foi aberta. Vieram todos para Joinville, até os funcionários. O nome, Consul, também foi mantido. “A condição era de que tivesse o nome Cônsul. O consul era bem velhinho e ainda eram amigos”.
“Meu pai era um sonhador, gostava de inventar...”
Stutzer ficou na empresa até o final dos anos 50. Mas era um inventor, tinha a alma inquieta e foi buscar novos horizontes. Quando saiu da sociedade, passou seis meses na Europa visitando cidades e empreendimentos criativos e voltou para Joinville cheio de novas ideias. “A medida que o negócio crescia, ele se afastava, tinha cada vez menos interesse. Meu pai era um sonhador, gostava de inventar... chamavam ele de professor Pardal”, analisa a filha.
E foi o que Rudolf Stutzer fez nas décadas seguintes. Visitou e filmou mini-cidades na Alemanha, criadas para entretenimento, e teve a ideia de fazer projetos semelhantes por aqui, com as belezas do Brasil. Algo similar aos parques temáticos de hoje. Chegou a montar no morro do Boa Vista um protótipo do “Caracol”, uma cascata inspirada na existente em Canela, no Rio Grande do Sul. Porém, não encontrou investidores em Joinville para levar os projetos adiante. Dolores conta que Blumenau chegou a se interessar pela ideia, mas Stutzer não queria deixar Joinville. “Ele visualizou um parque temático. Mas não tinha dinheiro e a cidade não investiu”, lamenta a filha.
Stutzer também conheceu o País. Com seu “Triminhão”, um veículo triplo, com um carro de força, que puxava um ônibus onde morava com a esposa e um segundo trailer que era usado como laboratório fotográfico, ele documentou o nascimento de Brasília, em 1961.
Com a esposa, começou a organizar excursões turísticas pelo País. Primeiro foram para o Rio Grande do Sul, de Kombi, e acertaram a parte hoteleira em uma época em que a palavra bastava pra fechar um negócio. A princípio levava os grupos na Kombi mesmo. Mas eram poucas pessoas – apenas seis. Depois, ele seguia na Kombi e o grupo ia de ônibus atrás.
A família também participava de algumas aventuras. Como em 1969, quando o casal comemorou um aniversário de casamento colocando os filhos e netos em duas Kombis e viajando até Assunção, no Paraguai.
Stutzer com sua kombi. Acervo Dolores Heinzelmann
Águas Dançantes encantavam o público
Quando veio da Alemanha trouxe também a ideia de um espetáculo motorizado com água “que se mexia” e música, nos moldes do que havia visto por lá. Em pouco tempo, surgiam as “Águas Dançantes”, um evento itinerante que marcou época na região.
O show era uma composição de águas coloridas, como chafarizes, que saíam de uma tubulação. Elas não eram tingidas e o efeito de luz era proporcionado pela iluminação. Todo o espetáculo era realizado manualmente. Stutzer e a esposa ficavam atrás do painel controlando o maquinário das águas. O equipamento era montado em um ônibus e, com isso, podia ser levado aos locais de evento. Um ponto tradicional era a Festa das Flores, no salão da Sociedade Harmonia-Lyra. Mas as Águas Dançantes também foram levadas pelo País todo – inclusive em um circo. “A mãe contava que uma noite houve uma tempestade e os artistas não puderam se apresentar porque as roupas estavam úmidas. Eles fizeram duas apresentações das Águas Dançantes. O povo aplaudiu”, conta.
Águas Dançantes na Sociedade Harmonia-Lyra. Acervo Dolores Heinzelmann
De outra vez, em Nova Trento, houve uma cena inesperada. O público acompanhava atentamente o espetáculo e na hora em que as águas formaram um nicho, como nos altares, uma freira caiu de joelhos: “Eu vi Nossa Senhora”, teria gritado. “Isso, para ele, foi uma satisfação”, conta a filha.
Neta de Rudolf Stutzer, Lia Ingrid Heinzelmann lembra que chegou a apresentar o show, com os avós. “Primeiro passava uma sessão de filmes. Depois eu entrava, pedia para apagar as luzes e para ficarem em silêncio porque seria apresentado o espetáculo das Águas Dançantes, idealizado e concretizado pelos meus avós, o casal Stutzer”, lembra.
Nos últimos anos de vida, Rudolf Stutzer trabalhou na Companhia Hansen, a atual Tubos e Conexões Tigre. Segundo a filha Dolores, o proprietário da empresa, João Hansen, comprou um maquinário alemão, que apresentou um problema na hora de entrar em funcionamento. “Os canos estouravam”, conta. Os técnicos e engenheiros da empresa fornecedora tentaram dar um jeito no problema, mas não conseguiram. Amigo de Stutzer, João Hansen o chamou para acabar com a questão. Ele resolveu e continuou por anos na empresa, sempre em serviços variados, buscando soluções.
Lá, ele trabalhou até o fim da vida. “Quando não podia mais dirigir, mandavam um carro buscá-lo em casa. Ele tinha gota, os joelhos doíam. Quando não podia mais sair, o senhor João Hansen montou a oficina para o pai em casa. Ele não precisava ir mais lá, mas continuava trabalhando”.
Na época, estava desenvolvendo um motor a base de água, que testava junto com o vizinho e amigo Manfred Kress. Depois começou a trabalhar em um motor movido a capim. “Você devia ver que laboratório ele tinha nessa época...”, comenta a filha. O laboratório ficava no próprio terreno da família, na esquina das ruas Max Colin e Padre Anchieta.
O motor a capim chegou a funcionar, mas ainda precisava ser aperfeiçoado. Rudolf Stutzer, porém, não teve tempo para isso. Em 1983 sofreu um derrame e ficou com um lado do corpo paralisado. Cerca de um ano depois, em 17 de janeiro de 1984, ele faleceu. “Foi no dia em que minha filha nasceu. Levaram a notícia e ele deu o último suspiro”, recorda a neta Lia.
Fotos de abertura: Stutzer em evento em Porto Alegre. Crédito das fotos: Acervo Dolores Heinzelmann
Esta matéria foi publicada originalmente no jornal Notícias do Dia/Joinville, em 2015
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Que história maravilhosa! Deveria se tornar uma mini série, fiquei emocionada com a sua inteligência criativa. Um grande homem!
Parabéns. Minha esposa assistiu o Show das águas dançantes em Jaraguá do Sul bairro Rio cerro ll. Com Rudolf Stuzer. Ela fala muito nele.
Obrigada!
As ÁGUAS DANÇANTES FOI APRESENTADO NO SALÃO ALIANÇA. DA FAMÍLIA ROEDER. MINHA ESPOSA MARLENE ROEDER.
Obrigada pela observação.