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Tecer, bordar e nos curar.

A vida sempre tem momentos de incertezas. Às vezes incertezas maiores, às vezes menores. Às vezes tempos curtos, às vezes tempos longos. E cada pessoa encontra meios de lidar com isso do jeito que sabe e pode, e seguir em frente.

Tradicionalmente mulheres tecem, costuram, agasalham, lidam com fios e tecidos para os mais diversos fins. Nossas avós e bisavós costuravam para os seus filhos, para a sua família. Era uma forma não só de vesti-los, mas também de amá-los. Minha mãe contava que as moças do subúrbio do Rio de Janeiro, lá pelos anos de 1950, não repetiam vestidos nas missas de domingo. Muito menos nos bailes. Para isso, as mães sentavam-se em suas máquinas de costura para criar novos modelos, reformar os antigos, mexer aqui e ali, mudar. Bordavam os detalhes com carinho. E um vestido novo surgia. Assim como costuram, tecem e bordam para as ocasiões felizes, mães e filhas também lidam com fios e tecidos nos momentos de espera, de ansiedade ou de tristezas. Lidar com linhas e tecidos é curativo.

Na literatura ou na mitologia, isso aparece muitas vezes. Amaranta, na distante Macondo, mesmo com a mão ferida e envolta em atadura, tecia a sua interminável mortalha dia após dia – e a desmanchava noite após noite talvez na esperança vã de adiar a morte, de adiar o fim de uma vida estéril, marcada pelo medo de amar.

Penélope tecia e desmanchava uma colcha sem fim à espera de seu Ulisses, que havia partido para a guerra. E a moça tecelã, aqui de perto, dava vida aos sonhos e à imaginação nas tramas de seus tapetes – e com a mesma habilidade que os criava, um dia acabou sumariamente com eles, mostrando que de boba não tinha nada.

Em tempos de pandemia e pandemônio, mais que nunca o recolhimento está sendo necessário. E velhos hábitos cultivados dentro de casa, como tecer, costurar e bordar estão sendo retomados. São saberes tirados lá do fundo do baú das referências para nos ajudar a lidar com um período em que tudo o que parecia tão certo já não o é. Um período em que o mundo, as pessoas, a vida que tínhamos a ilusão fugaz de conhecer muda rapidamente.

Como tantas mulheres, aprendi a lidar com agulhas e linhas ainda menina. Com sete anos já fazia crochê na escola, nas aulas de educação para o lar (sim, caros amigos, existia isso). Bordei o enxoval do meu filho nos poucos meses de espera por ele, que chegou bem antes da hora. Porém, depois disso, em meio à profissão, à casa, ao ritmo acelerado da vida, nunca mais consegui tempo para me dedicar a esses fazeres que me faziam tão bem.

Mas eis que agora surge a urgência de se manter em casa – a única coisa que nós, seres ignorantes e mortais, podemos fazer para nos proteger de um inimigo invisível e, sobretudo, desconhecido. Surge também a necessidade de se distanciar um pouco do turbilhão de notícias ruins que nos rondam e, nem que seja por alguns momentos, mudar o foco, esvaziar a cabeça, relaxar.

Tem gente que limpou a própria casa como há muito tempo não fazia e organizou as gavetas que sempre ficavam para depois. Outros começaram a cozinhar para a família ou lembraram do velho e bom hábito de fazer pão. Há quem tenha consertado algumas coisas, ou até tirado da estante os livros empoeirados.

Em meu escritório, em meio à longa lista de pendências, olhei para os meus fios, agulhas e riscos abandonados há tanto tempo, e voltei a bordar. Um pontinho aqui, outro ali, o desenho logo surgiu, o estresse diminuiu e as noites começaram a passar de forma tranquila, a despeito do turbilhão do mundo exterior.

Assim como no conto da moça tecelã, o bordado por um instante toma conta do presente, se faz realidade com as cores e desenhos que mais gosto, que fazem bem à alma. E sempre fica o devaneio de que, a exemplo dos tapetes da personagem de Marina Colasanti, o bordado em tecido fino também tenha a magia de recriar a triste realidade do País e do mundo, da qual queremos nos livrar – e, ao final, eu possa desmanchá-lo ponto por ponto e fazê-lo desaparecer.

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